A paixão segundo G.H.

Na minha casa fresca, aconchegada e úmida.

A paixão segundo G.H.

Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

“Esclarecimentos: explicação de uma vez por todas”, em Todas as crônicas

Casarão onde viveu em Recife, na praça Maciel Pinheiro, bairro da Boa Vista

Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. "Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são meus." Mas esse não é totalmente branco, tem janelas verdes." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.

“Cem anos de perdão”, em Felicidade clandestina

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife. Meu pai acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?

“Banhos de mar”, em Todas as crônicas

Clarice, com seis anos, ao lado das irmãs Elisa (ao centro) e Tania (à esquerda), Recife, 1927

Belém
Nápoles
Berna
Torquay
Washington

St. Moritz, 1948

Clarice e Maury na ponte Rialto, em Veneza

Nápoles, 1944

Isso aqui é lindo. É uma cidade suja e desordenada, como se o principal fosse o mar, as pessoas, as coisas. As pessoas parecem morar provisoriamente. E tudo aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima: são as verdadeiras cores.

Carta a Lúcio Cardoso, Nápoles, 1944

É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranquila como a de Berna. É uma fazenda.

Carta às irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, Berna, 5.4.1946

Cartão-postal de Berna, cidade onde Clarice viveu com
 Maury de 1946 a 1949 e teve seu primeiro filho, Pedro

Vi em Londres uma terra estranha e viva, cinzenta – tudo o que é cinzento misteriosamente vibra para mim [...].

"As pontes de Londres", em Todas as crônicas

Clarice em sua casa, no bairro do Leme, Rio de Janeiro

Lembro-me de uma noite, na Polônia, na casa de um dos secretários da Embaixada, em que fui sozinha ao terraço: uma grande floresta negra apontava-me emocionalmente o caminho da Ucrânia. Senti o apelo. A Rússia me tinha também. Mas eu pertenço ao Brasil.

“Falando em viagens”, em Todas as crônicas

Clarice com a família em Washington, Estados Unidos,
onde viveu por quase sete anos, de 1952 a 1959

Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector – figuras da escrita:

O conto “Feliz aniversário”, desmontando a questão das aparências, das máscaras, e do que um ato social tem de falso, gira à volta de um acontecimento familiar ritualizado: a celebração do aniversário de um dos seus membros. Trata-se, com certeza, de um texto paradigmático, na medida em que, centrando-se na focagem da mesa, resume o espírito dos contos do livro onde se integra. Por isso mesmo Roberto Corrêa dos Santos diz que o texto esboça bem “a lógica dos contos constantes do livro Laços de família. Os ‘laços’, de família, constituem-se ao mesmo tempo em proximidade, distância, dilaceramento e prisão.”

Ainda não absorvi o Rio, sou lenta e difícil. Precisaria de mais alguns meses para entender de novo a atmosfera. Mas que é bom, é. É selvagem, é inesperado, e salve-se quem puder.

Carta a Mafalda Verissimo, Rio de Janeiro, 14.08.1954

Praia do Leme, no bairro onde Clarice morou no Rio de Janeiro a partir de junho de 1959. Fotografia de Marcel Gautherot, 1976

Hoje de manhã, quando amanhecer e o sol nascer, irei à praia. Entrarei n’água. É tão bom. Ah, quantas dádivas! Por exemplo, eu ainda estar viva e poder entrar na água do mar.

“Trechos”, em Todas as crônicas

Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver. Saltei do táxi e atravessei os largos portões. A sombra logo me acolheu. Fiquei parada. Lá a vida verde era larga. Eu não via ali nenhuma avareza: tudo se dava por inteiro ao vento, no ar, à vida, tudo se erguia em direção ao céu. E mais: dava também o seu mistério.

“O ato gratuito”, em Todas as crônicas

Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
Fotografia de Camillo Vedani, circa 1868

Eu vi uma coisa. Coisa mesmo. Eram dez horas da noite na Praça Tiradentes e o táxi corria. Então eu vi uma rua que nunca mais vou esquecer. Não vou descrevê-la: ela é minha. Só posso dizer que estava vazia e eram dez horas da noite. Nada mais. Fui porém germinada.

“Uma coisa”, em Todas as crônicas

Água viva

A palavra é a minha quarta dimensão.

Água viva

Quando eu aprendi a ler, devorava os livros, e pensava que eles eram como árvore, como bicho, coisa que nasce. Não sabia que havia um autor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que era assim e disse: “Isso eu também quero.”

"Depoimentos para a posteridade", em entrevista concedida
ao Museu da Imagem e do Som, 20.10.1976

Eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Hermann Hesse. [...] E eu, que já escrevia pequenos contos, [...] comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

“O primeiro livro de cada uma de
minhas vidas”, em Todas as crônicas

Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.

“Explicação de uma vez por todas”, em Todas as crônicas

Um sopro de vida

A hora da estrela

Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.

Água viva

Crítica de Antonio Candido a Perto do Coração Selvagem (1943), romance de estreia de Clarice Lispector, publicada na Folha da Manhã, 16.07.1944

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Hélène Cixous, em “A la lumière d’une pomme”: 

Se Kafka fosse mulher. Se Rilke fosse uma brasileira judia nascida na Ucrânia. Se Rimbaud tivesse sido mãe, se tivesse chegado aos 50 anos. Se Heidegger tivesse podido deixar de ser alemão, se tivesse escrito o Romance da terra. Por que cito todos estes nomes? Para reconstruir a atmosfera. Há por aí algo que tem a ver com o que escreve Clarice Lispector. Aí onde respiram as obras mais exigentes, ela avança. Mas, onde o filósofo perde o ânimo, ela continua, vai ainda mais longe, mais longe que qualquer tipo de saber.

Em sentido anti-horário: carteira do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Guanabara; com o escritor português Júlio Dantas; com o conselheiro João Duarte Filho; com Gastão Peralva e Alcindo de Azevedo Sodré, diretor do Museu Imperial, em Petrópolis.

Eucanaã Ferraz, em Uma literatura sem literatura:

Ao se dizer “anônima e discreta” nos livros, Clarice transferia para a crônica toda a carga de intimidade e biografismo, como se o fizesse impelida por uma força incontrolável. E, curiosamente, a força parece vir de fora dela. Não de uma instância superior, mística ou divina, mas de algo bastante prosaico: sua máquina de escrever.

Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre o problema da superprodução do café no Brasil terminarei sendo pessoal. Daqui em breve serei popular? Isso me assusta. Vou ver o que posso fazer, se é que posso. O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: "Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos".

“Fernando Pessoa me ajudando”,
em Todas as crônicas

Datiloscritos do livro Água viva

Clarice Lispector com escritores e amigos: Carolina Maria de Jesus; Fernando Sabino; Lauro Moreira, Marly de Oliveira e Manuel Bandeira; Erico e Mafalda Verissimo, padrinhos de seus filhos, Pedro e Paulo; Lygia Fagundes Telles e o escritor argentino Antonio Benedetto

Sempre andei com um pé na imprensa. Na revista Senhor, por exemplo. Todo mês publicavam uma coisa minha. Em termos de popularização talvez tenha sido muito importante. Eu sou uma tímida arrojada.

"Depoimentos para a posteridade", em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, 20.10.1976

Capas da revista Senhor, que publicou célebres contos de Clarice Lispector nos anos 1950 e 1960

Páginas internas da revista Senhor, com contos
publicados de Clarice Lispector

[...] muitas vezes a minha chamada inteligência é tão pouca como se eu tivesse a mente cega. As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive e tenho. E, apesar de admirar a inteligência pura, acho mais importante, para viver e entender os outros, essa sensibilidade inteligente.

“Sensibilidade inteligente”, Todas as crônicas

“Amor”, em Laços de família

E a morte não era o que pensávamos.

“Amor”, em Laços de família

Georges Bataille, em O erotismo:

A vida é sempre
um produto da

decomposição
da vida.

Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo.

“Amor”, em Laços de família

Negativo em película: fotografia do retrato de Clarice feito por Dimitri Ismailovitch, 1974

Benedito Nunes, em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector:

O mundo de Clarice Lispector é escatológico, sexuado, ritmado por pulsações: mundo nauseante, de odores fortes, crus, podres e sensuais – odores de cal e de porcaria, de maresia, de cemitérios e coisas guardadas, de estrebarias, de vacas, de sangue, de elefantes e jasmins adocicados e de peixe.

[...] Os seres vivos são coisas túrgidas e viscosas, como pétalas grossas e carnudas, volumosas dálias e tulipas, raízes grossas e plantas silenciosas; os objetos úteis são coisas sólidas e impenetráveis, como lâmpadas e cristaleiras, bibelôs e canos d'água.

A infinita história das coisas, Sofia Borges, 2018.

O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado.

“Nos primeiros começos de Brasília”, em Todas as crônicas

“Explicação de uma vez por todas”, em Todas as crônicas.

Medo. Óleo sobre madeira, de Clarice Lispector, 1975

Ah, como quero morrer. Nunca ainda experimentei morrer – que abertura de caminho tenho ainda à frente.

“Primavera ao correr da máquina”, em Todas as crônicas

“Explicação de uma vez por todas”, em Todas as crônicas.

Antes de aprender a ler e a escrever eu já fabulava. Inclusive, eu inventei com uma amiga minha uma história que não acabava. [...] era assim: eu começava, tudo estava muito difícil; os dois mortos... Então entrava ela e dizia que não estavam tão mortos assim. E aí recomeçava tudo outra vez...

“Depoimentos para a posteridade”, em entrevista concedida
ao Museu da Imagem e do Som, 20.10.1976

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Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez! E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a — e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.

A hora da estrela

Macabéa me matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça.

A hora da estrela

Macabéa me matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça.

A hora da estrela

E eu?
Será que não
serei meu
próprio
personagem?

Um sopro de vida

Vamos não morrer como desafio?

Água viva