Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

O estado de graça era apenas uma pequena abertura.

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

[...] há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.

“Estado de graça – trecho”, em Todas as crônicas

O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e o seu rosto é o rosto de um homem. É a mais bela e cruciante verdade do mundo. Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.

“Anunciação”, Todas as crônicas

Anunciação. Óleo sobre papel, de Angelo Savelli, 1944

José Tolentino Mendonça, em A mística do instante:

Com a criação (isto é, desde o princípio dos princípios) ficou estabelecida uma fascinante e inquebrantável aliança: aquela que une espiritualidade divina e vitalidade terrestre. Pois onde experimentaremos melhor, a partir de agora, o Espírito de Deus senão no extremos da carne tornada vida? Onde contataremos com o seu sopro senão a partir do barro? Onde nos abriremos à sua tangível passagem senão através dos sentidos?

São João da Cruz. Fotografia de Horacio Coppola, 1945

São João da Cruz. Fotografia de Horacio Coppola, 1945

Torres gêmeas da Catedral de Bâle, às margens do rio Reno, fotografadas por Clarice em 1947

Foto da escultura de Alfredo Ceschiatti enviada a Clarice em 1947

Manuscrito de Um sopro de vida

Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo "águas abundantes" estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silêncio.

Água viva

A natureza dos seres e das coisas – é Deus?

Água viva

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

A Natureza é como um coração pulsando.

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva.

Água viva

Fotografias de Marcel Gautherot

A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva.

Água viva

Fotografias de Marcel Gautherot

O impulso erótico das entranhas se liga ao erotismo das raízes retorcidas das árvores. É a força enraizada do desejo. Minha truculência. Monstruosas vísceras e quentes lavas de lama ardente.

Trecho de “Objeto gritante”, que deu origem ao livro Água viva

Acontece que tudo que vive e que chamamos de "natural" é, em última instância, sobrenatural.

“Literatura e magia”, em Outros escritos

Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.

“Cem anos de perdão”, em Felicidade clandestina

Fotografia de Maureen Bisilliat, 1969

Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo

Água viva

Mangueiras do Jardim Botânico. Fotografia de Marc Ferrez, circa 1880

Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.

“Estado de graça - trecho”, em Todas as crônicas

Água viva

Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia.

Água viva

Não humanizo bicho porque é ofensa – há de
respeitar-lhe a natureza – eu é que me animalizo.

Água viva

Modelo com gorila. Fotografias de Otto Stupakoff, 1976

Série Zoo. Fotografia de João Castilho, 2017

Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio
de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.

Água viva

Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bichos. Eu adoro. Já tive macaco, na infância. Me dou muito bem com bicho. Eu entendo uma galinha perfeitamente, quer dizer, a vida íntima de uma galinha eu não sei como é. Me dou tão bem com bicho, você não imagina. Talvez porque sou de Sagitário, metade bicho.

Entrevista ao jornal O Globo, 29.04.1976

Qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura.

“O homem que apareceu”, em A via crucis do corpo

Reproduzir vídeo

Série Zoo. Fotografia de João Castilho, 2017

Carlos Mendes de Sousa, em
Clarice Lispector – figuras da escrita:

O animal começa por ser entrevisto como um dos mais óbvios e indispensáveis signos numa caracterização da escrita de Clarice Lispector, cuja fundamentação pudemos encontrar no ovo, figura fundadora. Falar em Clarice Lispector é falar da barata ou da galinha ou do cavalo e poder-se-ia, seguidamente, continuar com um extenso rol: o cão, um búfalo, um mico, uma esperança etc. No entanto, os três primeiros constituem uma tríade sustentada por um extraordinário comparecimento obsessivo.

Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.

A paixão segundo G.H.

Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.

A paixão segundo G.H.

De pé no
banheiro era tão anônima quanto uma galinha.

“A procura de uma dignidade”, em Onde estivestes de noite

De pé no
banheiro era tão
anônima quanto
uma galinha.

“A procura de uma dignidade”, em Onde estivestes de noite

A recorrência visível do mundo das galinhas é intencionalmente chamativa. Elas surgem sobretudo em função do ovo e isso é claramente marcado; no entanto, surgem como são, não se doura o cenário, não se mitifica uma cena primordial de galinhas com ovos de ouro, elas são as galinhas em toda a sua burrice, nos seus gestos maquinais de sua herança secular.

Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector – Figuras da escrita:

O cavalo representa a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.

“Onde estivestes de noite”, em Onde estivestes de noite

Já vi cavalos soltos no pasto onde de noite o cavalo branco – rei da natureza – lançava para o alto ar seu longo relincho de glória. Já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim de pé com a mesma altivez do cavalo e a passar a mão pelo seu pelo nu. Pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: a mulher e o cavalo.

Água viva

Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela — que entende o significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto.

Quase de verdade

A paixão segundo G.H.

Respondo cada vez que alguém disser: eu.

A paixão segundo G.H.

Bíblia, Êxodo 3:11-14:

Moisés perguntou a Deus: — Quem sou eu para ir falar com o rei do Egito e tirar daquela terra o povo de Israel? Deus respondeu: — Eu estarei com você. Quando você tirar do Egito o meu povo, vocês vão me adorar neste monte, e isso será uma prova de que eu o enviei. Porém Moisés disse: — Quando eu for falar com os israelitas e lhes disser: “O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês”, eles vão me perguntar: “Qual é o nome dele?” Aí o que é que eu digo? Deus disse: — Eu sou quem sou. E disse ainda: — Você dirá o seguinte: “EU SOU me enviou a vocês.

Me deram
um nome e
me alienaram
de mim.

Um sopro de vida

José Miguel Wisnik, em “Ficção ou não”:

"Eu" é a última palavra estrutural que a criança aprende a manejar e a primeira que, em certas condições, o afásico perde: é a própria encruzilhada na qual se decide o pertencimento dos sujeitos ao campo da língua.

Você de repente não se estranha de ser você?

Um sopro de vida

Retrato de Clarice. Óleo sobre cartão, de Giorgio de Chirico, 1945

Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos.

Um sopro de vida

Joana Lídia Virgínia Lucrécia G.H. Janair Lóri Macabéa Sofia Glória Madame Carlota Angela Pralini Pequena flor Vitória Ermelinda Luísa

Um de meus filhos me diz: “Por que é que você às
vezes escreve sobre assuntos pessoais?”
Respondi-lhe que, em primeiro lugar, nunca toquei, realmente, em meus assuntos pessoais, sou até uma pessoa muito secreta. E mesmo com amigos só vou até certo ponto. É fatal, numa coluna que aparece todos os sábados, terminar sem querer comentando as repercussões em nós de nossa vida diária e de nossa vida estranha.

“Vietcong”, em Todas as crônicas

Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos — sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que signifique.

A hora da estrela

Clarice Lispector por Cássio Loredano.

Morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes de minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias-lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte. Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem.

“As três experiências”, em Todas as crônicas

Clarice
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
...............................

Carlos Drummond de Andrade, em "Visão de Clarice Lispector"

“As três experiências”, em Todas as crônicas

Há apenas um registro em áudio e outro em vídeo de Clarice Lispector. Para ilustrar esta narrativa, a voz de Clarice foi retirada da série “Depoimentos para a posteridade”, do Museu da Imagem e do Som, 1976, e as imagens, da entrevista concedida a Júlio Lerner, no programa Panorama, da TV Cultura, em 1977.