Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
O estado de graça era apenas uma pequena abertura.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
[...] há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
“Estado de graça – trecho”, em Todas as crônicas
O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e o seu rosto é o rosto de um homem. É a mais bela e cruciante verdade do mundo. Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro.
“Anunciação”, Todas as crônicas
Anunciação. Óleo sobre papel, de Angelo Savelli, 1944
José Tolentino Mendonça, em A mística do instante:
Com a criação (isto é, desde o princípio dos princípios) ficou estabelecida uma fascinante e inquebrantável aliança: aquela que une espiritualidade divina e vitalidade terrestre. Pois onde experimentaremos melhor, a partir de agora, o Espírito de Deus senão no extremos da carne tornada vida? Onde contataremos com o seu sopro senão a partir do barro? Onde nos abriremos à sua tangível passagem senão através dos sentidos?
São João da Cruz. Fotografia de Horacio Coppola, 1945
São João da Cruz. Fotografia de Horacio Coppola, 1945
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo "águas abundantes" estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silêncio.
Água viva
A natureza dos seres e das coisas – é Deus?
Água viva
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
A Natureza é como um coração pulsando.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva.
Água viva
Fotografias de Marcel Gautherot
A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva.
Água viva
Fotografias de Marcel Gautherot
O impulso erótico das entranhas se liga ao erotismo das raízes retorcidas das árvores. É a força enraizada do desejo. Minha truculência. Monstruosas vísceras e quentes lavas de lama ardente.
Trecho de “Objeto gritante”, que deu origem ao livro Água viva
Acontece que tudo que vive e que chamamos de "natural" é, em última instância, sobrenatural.
“Literatura e magia”, em Outros escritos
Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
“Cem anos de perdão”, em Felicidade clandestina
Fotografia de Maureen Bisilliat, 1969
Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo
Água viva
Mangueiras do Jardim Botânico. Fotografia de Marc Ferrez, circa 1880
Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
“Estado de graça - trecho”, em Todas as crônicas
Água viva
Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia.
Água viva
Não humanizo bicho porque é ofensa – há de
respeitar-lhe a natureza – eu é que me animalizo.
Água viva
Modelo com gorila. Fotografias de Otto Stupakoff, 1976
Série Zoo. Fotografia de João Castilho, 2017
Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio
de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.
Água viva
Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bichos. Eu adoro. Já tive macaco, na infância. Me dou muito bem com bicho. Eu entendo uma galinha perfeitamente, quer dizer, a vida íntima de uma galinha eu não sei como é. Me dou tão bem com bicho, você não imagina. Talvez porque sou de Sagitário, metade bicho.
Entrevista ao jornal O Globo, 29.04.1976
Qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura.
“O homem que apareceu”, em A via crucis do corpo
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Série Zoo. Fotografia de João Castilho, 2017
Carlos Mendes de Sousa, em
Clarice Lispector – figuras da escrita:
O animal começa por ser entrevisto como um dos mais óbvios e indispensáveis signos numa caracterização da escrita de Clarice Lispector, cuja fundamentação pudemos encontrar no ovo, figura fundadora. Falar em Clarice Lispector é falar da barata ou da galinha ou do cavalo e poder-se-ia, seguidamente, continuar com um extenso rol: o cão, um búfalo, um mico, uma esperança etc. No entanto, os três primeiros constituem uma tríade sustentada por um extraordinário comparecimento obsessivo.
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.
A paixão segundo G.H.
Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real.
A paixão segundo G.H.
De pé no
banheiro era tão anônima quanto uma galinha.
“A procura de uma dignidade”, em Onde estivestes de noite
De pé no
banheiro era tão
anônima quanto
uma galinha.
“A procura de uma dignidade”, em Onde estivestes de noite
A recorrência visível do mundo das galinhas é intencionalmente chamativa. Elas surgem sobretudo em função do ovo e isso é claramente marcado; no entanto, surgem como são, não se doura o cenário, não se mitifica uma cena primordial de galinhas com ovos de ouro, elas são as galinhas em toda a sua burrice, nos seus gestos maquinais de sua herança secular.
Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector – Figuras da escrita:
O cavalo representa a animalidade bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.
“Onde estivestes de noite”, em Onde estivestes de noite